27 julho 2008

HISTÓRIAS DA CHARNECA

O Chico “Charrua”
A alcunha herdara-a do seu avô materno, por desde de tenra idade ter a fisionomia e feitio do velhote.
Ficou órfão de pai e mãe tinha apenas quatro anitos. Foi para casa de uma tia, onde já labutavam três primos, guardando cabras, porcos ou vacas, ou ajudando em diversos trabalhos sazonais.
Nunca nenhum deles conheceu o que era a ardósia, nem a “menina dos sete olhos”. Quando algum bácoro mais vadio não aparecia ao sol-posto, aí é que a “porca torcia o rabo” ao chegar a casa, ou ia à procura do animal até o encontrar, ou era certo e sabido que trabalhava a vara de marmeleiro e passava por debaixo da mesa.
Os anos foram passando, o “Charrua” foi crescendo, sempre trabalhando no campo, lavrando, semeando, ceifando e debulhando o trigo, colhendo azeitona, mudando de patrão, consoante as necessidades de ambos. O trabalho tinha por ajuste uma semana, desde o nascer do sol de segunda-feira até ao sol-posto de sábado.
Ao Domingo toca a levantar cedo, pegar na enxada e ir até à horta e cavar desalmadamente, a terra para a sementeira das batatas, ou das couves, mal tendo tempo para saborear um naco de pão com morcela, que lhe servia de pequeno almoço e de mata-bicho.
Restava-lhe um pedaço da tarde de Domingo para jogar ao “belho” ou fito e beber uns copitos, poucos, ouvir na telefonia da taberna o relato da bola, depois de pagar o baile pouco sobejava, porque a semanada essa fora entrega à tia no sábado à noite.
Segunda-feira de madrugada toca a levantar cedo, alforges às costas, “fatada” aviada, para toda a semana, e lá por dentro sempre remoendo angústias de quem gostaria de mudar de vida e conhecer a capital, mas estava amarrado de pés e mãos.
Só via uma saída. Quando for às “sortes”, talvez fique apurado, pode ser que o mandem para algum quartel de Lisboa.
O dia das “sortes”, foi o dia mais triste da sua vida, quase toda a rapaziada com fitas vermelhas no chapéu, só ele e o trinca espinhas do Barradas com fitas brancas.
Mas, Lisboa chamava por ele. Sem nunca lá ter ido ou visto qualquer imagem, ele imaginava como eram grandes os prédios, muita gente aos encontrões uns aos outros, talvez mais gente até do que na feira de S. Miguel em Nisa, realizada anualmente no mês de Outubro.
O capataz contava-lhe minuciosamente, todos os passos que dera em tempos, quando por volta de 1929 emigrou para França e dali rumou para a Argentina, outros camaradas rumaram de França para os Estados Unidos, clandestinamente, no porão de ronqueiros navios, mais escondidos que ratos.
Mas, o bom do “Charrua”, pouco ou nada ligava à França ou à Argentina, o seu imaginário estava apenas concentrado na grande capital de Portugal.
Num Domingo à tarde, na taberna do “ti Manel Zé”, apareceu todo apinocado o “rouxinol”, mais velho do que ele três anos, funcionário da Companhia Carris de Lisboa, bem vestido, e com alguma gabarolice à mistura, lá foi enaltecendo a vida em Lisboa e quando se apercebeu da atenção que o “Charrua” lhe dava, então foi um desfiar de histórias, qual delas a mais atractiva.
Como quem não quer a coisa, foi-se abeirando do “rouxinol” e foi-se “embebedando” com as peripécias do antigo companheiro, cada uma delas mais atractiva que a anterior.
A noite estava a chegar não tardava nada e a lua grande e roliça convidava os destemidos a irem em busca de melhor sorte.
Depois de uma breve troca de impressões, o rouxinol disse-lhe com a maior das fanfarronices:
-Há mais dinheiro em qualquer canto de Lisboa, do que em todo o Alentejo.
O bom do “Charrua” nessa noite já não pregou olho. Tem que tomar quanto antes uma decisão e mudar o rumo da sua vida.
No sábado seguinte, depois de receber a jorna informou o capataz, de que não contasse com ele na próxima semana.
Bem tentaram saber para onde iria trabalhar, mas o “Charrua” fechou-se em copas”.
Depois de informar a tia da sua decisão, meteu pés a caminho de Vila Velha de Ródão para apanhar o comboio para Lisboa.
Chegou a Lisboa era quase meio-dia. De facto Lisboa ainda era maior do que ele imaginava. À noite os reclamos luminosos deixaram-no extasiado e à lembrança vinha-lhe sempre a celebre frase: -há mais dinheiro em qualquer canto de Lisboa, do que no Alentejo inteiro.
Acordou na estação do Rossio com a chegada de um comboio. O sol ainda estava longe de se vislumbrar. Deambulou sem destino, nem hora marcada pela estação, quando, sem que alguém vislumbrasse, a um canto lá estava uma nota de mil escudos misturada com papelada.
Olhou, mirou e remirou, passou-lhe uma onda pela cabeça, deu um pontapé na nota e na papelada e sai-lhe espontaneamente: -Só pego ao trabalho amanhã às nove.
José Hilário

12 julho 2008

Histórias da Aldeia

A licença
Era fatal como o destino. Quanto menos ganhavam, mais filhos tinham e a pobreza aumentava. Geralmente, o homem era o único “ganha-pão” do lar. Ele tinha que ter arte e manhas, para angariar mais alguns proventos, para ir sustentando a mulher e um rancho de filhos.
A profissão de pastor, ajustado por um ano, no dia de S. Pedro, único dia de folga dos pastores, e quando mudavam de patrão, era quando se juntavam todos os pastores numa almoçarada, bem regada e que na maior parte das vezes funcionava o cajado de zambujeiro, do Luciano, no “lombo” dos menos capazes, na arte de luta corpo a corpo, ou quando as opiniões dos outros não eram coincidentes com as suas.
Luciano, homem atarracado, fervia em pouca água, quase sempre arranjava sarilhos, à mais pequena dúvida, gerava discussão e terminava numa briga e por diversas vezes teve de “sentar o cu no moucho”.
Era temido pelos camaradas de profissão e pela população em geral.
O seu cajado de zambujeiro tinha fama.
Na malhada, manhã cedo, ainda o Sol dormia a sono solto, toca deixar as mantas da choça, ordenhar o gado, e ala que se faz tarde, visto ter sempre mais qualquer coisa para fazer, consoante a época do ano.
Apanhar pássaros, coelhos, lebres e perdizes, sem ter licença e fora da época de permissão, era para ele como beber água fresca, numa tarde de Julho, numa fonte qualquer, pelos campos do azinhal, ou por ribeiros e vales da freguesia de São Simão.
A Guarda Nacional Republicana, bem o espreitava, mas ele escapava-se como enguia dentro de água, nas mãos de uma criança.
Diz o povo e com razão que a necessidade aguça o engenho.
Em casa havia pobreza, mas também havia alguma riqueza, de iguarias, com tudo o que conseguia arranjar extraordinariamente, mesmo sem fazer horas extraordinárias.
Natural do Coxerro, aldeia do concelho de Vila Velha de Ródão, o senhor Joaquim, mais tarde apelidado de Joaquim das águas, por exercer a profissão de guarda-rios, instalou-se na Vinagra e todos os dias, zelosamente cumpria o seu dever percorrendo a ribeira de Nisa, o ribeiro da Salavessa e todas as linhas de água mais importantes. Ninguém podia mexer uma pedra que fosse, numa linha de água, sem a respectiva licença.
O guarda-rios sabia que o Luciano era permanentemente um transgressor nato, mas deitar-lhe a mão, aí é que a “porca torcia o rabo”.
Dava mil voltas à cabeça, mas não havia maneira de encontrar uma solução. Tentou por diversas vezes apanhá-lo em flagrante, mas o velhaco do Luciano tinha olhos de águia, ouvidos de rato e olfacto de cão perdigueiro.
Os caçadores às rolas, deixaram abandonado, um pequeno esconderijo, junto ao açude do “ti Moleiro”, na ribeira de Nisa, onde as rolas iam beber água no Verão e foi aí que o dedicado Joaquim das águas, o espreitou e esperou durante semanas seguidas.
O bom do Luciano, numa tarde tórrida de Julho, com o gado acarrado, debaixo dos choupos, resolveu ir fazer a sua pescaria, utilizando apenas a sua arte de pescador. Despiu as calças e a camisa, colocando-as à sombra de um pequeno arbusto e na pequena praia de areia grossa, deixou estendido o seu inseparável companheiro, ficando apenas com as ceroulas vestidas, não vendo mal algum na sua quase nudez, pois só se ouvia o zumbido das cigarras, não se vislumbrava alma viva em todo o vale da ribeira. Lá foi mergulhando e debaixo de cada lapa encontrava um barbo.
Após o terceiro mergulho, com um peixe em cada mão, pergunta-lhe o guarda-rios do outro lado da ribeira:
-Ó Luciano, com que então vai boa a pescaria? Mostra-me lá a licença de pesca!
O Luciano, ao mesmo tempo que metia os peixes na saca, responde-lhe secamente:
Olha-a além estendida no areal.
O guarda-rios “deu às de vila-diogo”, mais ligeiro que um sargento de infantaria.
José Hilário